sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

A Paladina do Amor

Tenham paciência, meu processo é difícil, falar sobre isso é difícil, lendo meu último texto comecei a chorar na mesa do trabalho.

Quero falar sobre uma pessoa hoje, uma pessoa que possui uma força mental que causaria inveja a muitas pessoas. Nos anos 90, ansiedade e depressão ainda eram falta de carácter, personalidade fraca, ou simplesmente desculpa de vagabundo para não trabalhar. Psiquiatras do SUS eram carniceiros que tratavam qualquer tipo de desequilíbrio mental da mesma forma.

Um marido que trabalhava em uma carreira em decadência, a metalurgia estava sem rumo, já que ninguém sabia o que fazer com as novidades tecnológicas da época, e a oferta de trabalho despencava mais a cada dia. Pressão da família para fazer as coisas darem certo, ansiedade batendo mais forte a cada dia, remédios extremamente antiquados que praticamente faziam seu corpo virar um saco de efeitos adversos, pressão no trabalho por não conseguir trabalhar todos os dias.  Foi nesse ambiente que minha mãe teve dois filhos, muito cedo, ainda com 23 anos.

Pois é meus caros, imagino se fosse eu a passar por isso. Mas por incrível que pareça, minha mãe nunca deixou isso chegar em nossas vidas. Eu e minha irmã tínhamos uma mãe carinhosa, atenciosa, e que nos enchia de amor diariamente. Imagino o quanto deve ter sido difícil guardar o choro e o desespero das crises de pânico só para depois que nós dormíamos.

Sabíamos que ela fazia uso de remédios, inclusive porque ela vivia perdendo o micro comprimido de Anafranil que ela deixava cair por ser muito desastrada e ficava desesperada porque se o cachorro encontrasse e comesse ele iria ficar mais louco que o Batman. Sabíamos que ela tinha problemas de saúde, mas isso nunca afetou nossa relação. Me lembro que alguma vezes ela passava mal, chorava, e algumas vezes chegou a quase desmaiar por conta de um susto ou outro, e não se enganem, para alguém com os níveis de adrenalina fora do normal um pequeno susto pode gerar um grande problema.

Mas era isso, não sabíamos a extensão do problema. Minha irmã mais velha sempre teve mais atenção a esses detalhes, mas mesmo assim éramos apenas crianças, vivendo uma infância simples, difícil, mas feliz. No fim do dia sempre estávamos lá, nós quatro, reunidos, conversando sobre o nosso dia, meu pai sempre me dando uma bronca ou outra, que eu merecia. Minha mãe sempre nos contava histórias antes de dormir, lembro que ela inventava histórias mágicas, sobre fadas, terras encantadas e tudo mais. Talvez ela já fosse uma fã de Tolkien sem sequer saber que ele existia.

E foi assim que os anos se passaram, quando ela achava que estava superando tudo isso, conseguia um emprego, começava a tomar as rédeas da vida, alguma coisa acontecia e ela voltava ao turbilhão de emoções, dores e medos. E foi assim até o final dos anos 2000. Só quando ela conseguiu passar no concurso do Metrô, com o acesso que tivemos a bons médicos, pois meu pai já trabalhava no mesmo lugar desde 2006, é que minha mãe conseguiu descobrir que não precisava suportar a doença, que era possível controla-la, deixá-la em um lugar onde atrapalharia menos.

Essa mulher, essa pessoa que não tinha um pingo sequer de estabilidade emocional, sempre foi nosso porto seguro, sempre foi o colo para onde eu corria na hora da dor, do medo, da insegurança. Ela sempre estava lá com um sorriso enorme me esperando, mesmo logo depois de brigar ou castigar, ela sempre estava lá no final, pronta pro afago. E foi esse afago que eu recebi depois daquele dia na recepção do hospital, quando eu fiquei completamente perdido, machucado, sem saber onde minha vida me levaria, imaginando que jamais conseguiria superar o que ela superou.

Ela me pegou pela mão pela enésima vez e me mostrou o caminho certo, o caminho que ela levou décadas para superar e que, como boa desbravadora, deixou aberto para que os próximos pudessem trilhá-lo com menos dificuldade. É claro que as coisas estavam só começando e o pior ainda estava longe de chegar para mim, naquela época eu ainda não tinha a menor ideia do que seria meu fundo do poço. Minha mãe sabia que esse caminho seria difícil e que somente eu poderia superá-lo, mas ela estava lá, sempre lá, tenho certeza que sofrendo por ver seu filho passando pelo mesmo que ela passou, mas sempre com aquele sorriso leve e acolhedor que me acalmava nos piores momentos.

Várias outras pessoas foram importantíssimas, e ainda são, nessa minha jornada, mas decidi começar essa lista pela minha mãe, pois ela foi a pessoa que mais entendeu pelo que eu passava, ela que desde o começo entendeu a gravidade da situação. Isso acontece porque as pessoas que não passam pela ansiedade, a depressão, o pânico, simplesmente não conseguem entender o que é isso. Eu mesmo costumava subestimar o que ela estava sentindo, tentava ajudar racionalmente, falando para se concentrar pois tudo aquilo era químico. Hoje o sentimento de culpa já foi superado, mas por muito tempo olhei para trás e me senti um imbecil lembrando desses momentos, e já pedi desculpas várias vezes a ela por isso.

Bom, é mais ou menos isso, gostaria de contar muito mais sobre a dona Márcia, mas já estou chorando demais daqui a pouco as pessoas vão achar que eu estou tendo uma recaída no trabalho. Espero que vocês gostem desse pequeno relato, talvez eu continue separando capítulos um pouco fora dessa linha do tempo para relembrar as pessoas da minha vida.

Um abraço carinhos a todos!

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